sábado, 31 de agosto de 2013

Mais direitos e menos Estado Penal para a juventude

* Bruno Elias


A divulgação das imagens de tortura de adolescentes infratores na Fundação Casa (ex-Febem) compõe um retrato representativo da violência contra a juventude brasileira.
O governo de São Paulo, responsável pela instituição que violou os direitos dos adolescentes privados de liberdade, tem apoiado as propostas de redução da maioridade penal e apresentou em abril um projeto de lei que prevê o aumento do tempo de internação no sistema socioeducativo para até 8 (oito) anos.
Embora devamos continuar vigilantes e mobilizados contra a redução da maioridade penal, a dificuldade de viabilizar uma mudança constitucional transformou a proposta de aumento do tempo de internação dos adolescentes no cavalo de Tróia dos conservadores.
Por meio dela, procura-se ampliar o Estado Penal sobre a juventude, enquanto a concretização dos direitos sociais previstos pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é relegada ao segundo plano no debate público. Deixar o adolescente mais tempo internado não só agrava o problema da violência como desvia a finalidade do sistema socioeducativo, que é exatamente de "disputar a trajetória" e incluir socialmente os adolescentes em conflito com a lei. Como fazer isso, internando-os durante TODA a adolescência e com este tipo de atendimento visto na Fundação Casa?
A despeito do sensacionalismo penal presente nos grandes meios de comunicação e no Congresso Nacional, a violência envolve majoritariamente o adolescente na condição de vítima e não de agente. São os adolescentes e jovens - particularmente os negros e pobres - que têm engrossado a inaceitável estatística de mais de 20 mil jovens morrendo anualmente por homicídio no Brasil.
Recordemos que até as manifestações de junho, a pauta de juventude patrocinada pelos setores conservadores avançava com toda a força: redução da idade penal, aumento do tempo de internação, toque de recolher nas comunidades, entre outras violações de direitos. E mesmo durante as mobilizações, o Estado Penal apresentou suas armas mais uma vez, reprimindo e criminalizando as lutas da juventude.
Por outro lado, o poder público e a sociedade civil participaram de um esforço importante de aperfeiçoamento das medidas socioeducativas. O resultado foi a criação do SINASE, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, por meio da Lei nº 12.594, de 2012.
Com a nova lei, as medidas de responsabilização dos adolescentes infratores são regulamentadas na perspectiva da garantia de direitos e considera a condição peculiar de desenvolvimento do adolescente. O SINASE estabelece marcos de funcionamento e organização do atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, prescrevendo diretrizes pedagógicas, arquitetônicas, materiais e de recursos humanos coerentes com o Estatuto da Criança e Adolescente.
Enfrentar a violência contra adolescentes e jovens é uma questão central do nosso tempo. Contra a redução da maioridade penal e o aumento do tempo de internação no sistema socioeducativo, devemos lutar pela plena implementação do SINASE e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Reforma política só com pressão popular

*Bruno Elias
Pelo menos nos discursos de alguns partidos políticos, lideranças e organizações da sociedade, o tema da reforma política tem retornado ao debate público. Aliás, é preciso dizer que nunca foi por uma questão de retórica que a “mãe das reformas” não saiu do papel. O que sempre faltou, na verdade, foi mobilização de amplas forças políticas e sociais em torno de sua reivindicação.
A reforma política é chave para um conjunto de transformações mais profundas no País. Mais do que enfrentar a corrupção e a privatização da política, tal iniciativa deve estar a serviço do alargamento da democracia e da participação popular, que são indispensáveis para a realização de um conjunto de outras reformas estruturais como a democratização das comunicações, a reforma agrária, urbana, tributária e do sistema financeiro.
Nesse sentido, é fundamental que a reivindicação de uma reforma política com participação popular aponte alguns eixos prioritários como o financiamento público exclusivo nas campanhas eleitorais; a ampliação dos referendos, plebiscitos e consultas diretas à população; o fortalecimento dos partidos com fidelidade partidária, o voto em lista pré-ordenada e o fim das coligações proporcionais; a ampliação da participação da juventude, das mulheres e da população negra nos espaços políticos; o fim da propriedade dos meios de comunicação por políticos e medidas de democratização e transparência do Poder Judiciário que inibam a “judicialização da política”.
É fato que setores expressivos da população como os jovens, as mulheres, os negros e os que vivem em condição de pobreza, entre outros, estão subrepresentados nos espaços de poder. Apesar disso e mesmo considerando os poderosos interesses que resistem às mudanças, é preciso reconhecer que a reforma política ainda não dispõe de um grande apelo junto aos setores populares.
Exemplos de tal comportamento são percebidos na reação de muitos à alguns pontos centrais da reforma política, como o financiamento público de campanha e o voto em lista partidária. Enquanto o primeiro é visto por vezes como “dar mais dinheiro do povo aos políticos”, o voto partidário não raro é confundido com “retirar o meu direito de votar em quem eu quiser”.
Constatar tais limites é fundamental para que partidos políticos e movimentos sociais assumam uma nova postura, mais pedagógica e combativa, em relação a este debate. De nada valem floreadas resoluções de encontros e congressos sem formação política, educação popular e trabalho de base que disputem e debatam as idéias transformadoras de uma reforma política no cotidiano dos trabalhadores.
Tampouco adiantará se tal constatação não for acompanhada de luta social e gente na rua. A atualização de um programa de reformas de base no Brasil pressupõe uma nova governabilidade, uma governabilidade social que reconheça a importância da institucionalidade no atual estágio da luta de classes no País, mas tenha na retomada das mobilizações e na reorganização de uma ampla frente democrática e popular o seu campo privilegiado de alianças e de ação política.
A profusão de propostas como a de uma nova constituinte, uma conferência nacional ou um plebiscito sobre a reforma política guardam em comum o reconhecimento de que uma reforma estrutural como esta não será realizada por aqueles que majoritariamente sempre foram beneficiados pelo atual sistema político.
Para tanto, a reforma política deve também contribuir para resgatar o sentido da participação das pessoas na vida pública e comunitária. Disputando com o individualismo, o consumismo e o conservadorismo disseminados pela sociedade do capital, a reforma do sistema político deve estar acompanhada da idéia de que é preciso mudar a política para mudar a vida e construir um mundo novo. (Março/2013)

A questão da idade no Estatuto da Juventude

* Por Severine Macedo e Bruno Elias


O projeto de lei do Estatuto da Juventude (PLC 98/2011) inaugura um momento decisivo de sua tramitação no Congresso Nacional. Em debate no legislativo desde 2004, o projeto de lei que trata dos direitos da juventude brasileira está na ordem do dia das comissões do Senado.

Dispostos a não comemorar o aniversário de 10 anos de tramitação do projeto, a Secretaria Nacional de Juventude e o CONJUVE têm reivindicado sua aprovação como uma das prioridades do ano de 2013. Articulados nas ruas e nas redes, as organizações e movimento sociais também incluíram a aprovação do estatuto entre as reivindicações da jornada de lutas da juventude, a ser realizada nos próximos dias em todo o Brasil.

O Estatuto da Juventude será uma inédita declaração de direitos singulares e universais dos jovens. Além disso, apontará as diretrizes e princípios das políticas públicas de juventude e a identificação da população que será contemplada como jovem no país. Aliás, é neste último ponto que reside uma das polêmicas em torno do projeto, que é definir qual faixa de idade deveria ser compreendida pelo Estatuto da Juventude.

Ao longo destes últimos nove anos em que o Estatuto da Juventude tramitou na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, firmou-se um entendimento de que a população jovem compreenderia as pessoas com idade de 15 a 29 anos. Compreensão semelhante orientou o governo federal a sancionar a Lei 11.129/2005, que criou a Secretaria e o Conselho Nacional de Juventude, com responsabilidades sobre as políticas públicas voltadas “aos jovens na faixa etária entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos, ressalvado o disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.”

Nos debates recentes sobre o Estatuto da Juventude, a questão da idade despertou polêmica sob dois aspectos. Por um lado, questionava-se o limite de idade até 29 anos, considerado extenso por alguns. Em resposta a tais observações, verificou-se que esta compreensão ampliada da juventude se justifica por fenômenos sociais contemporâneos que incidem no alongamento da condição juvenil, em parte pela necessidade de estender o tempo de escolaridade e formação profissional, mas também pelas dificuldades de inserção da atual geração de jovens no mundo do trabalho e em outras dimensões da vida adulta.

Por outro lado, o reconhecimento dos indivíduos de 15 a 18 anos como jovens pelo Estatuto da Juventude tem despertado dúvidas e preocupações no campo da política da criança e do adolescente, que teme pela sobreposição entre esta e a política de juventude e por retrocessos no debate sobre a maioridade penal.

Para tentar dirimir essa preocupação, a SNJ e o Conselho Nacional de Juventude têm apresentado nos seus documentos uma proposta de emenda ao projeto do Estatuto da Juventude, que dá maior nitidez ao alcance da lei, deixando expresso que os direitos e políticas de juventude são complementares ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Caso esta proposta seja acolhida, o Estatuto da Juventude teria tal ressalva desde o seu primeiro artigo:

“Art. 1º  (...)
§ 1º Para os efeitos desta Lei, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos.

§ Os direitos assegurados aos jovens nesta Lei serão interpretados de forma complementar e nunca em prejuízo do disposto para os adolescentes na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e Adolescente.”

            A proposta de emenda apresentada também é justificada pelo foco diferenciado que têm o Estatuto da Juventude em relação aos direitos e políticas públicas da criança e do adolescente. Enquanto a abordagem do ECA tem como diretriz a “doutrina da proteção integral”, o princípio que orientaria o Estatuto da Juventude seria o da promoção da autonomia e emancipação do jovem.
           
            Esta diversidade conceitual e o caráter complementar entre os dois estatutos também podem ser observados em um exercício de comparação entre os direitos já garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e a declaração de direitos proposta pelas emendas da Secretaria e do Conselho Nacional de Juventude.

No artigo 4º do ECA, estão garantidos como direitos das crianças e adolescentes os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Nas propostas da SNJ e do CONJUVE, por sua vez, constariam no Estatuto da Juventude os seguintes direitos singulares e universais: direito à participação; à educação; à profissionalização, ao trabalho e à renda; à diversidade e à igualdade; à saúde; à cultura; à comunicação e à liberdade de expressão; ao desporto e ao lazer; à sustentabilidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; ao território e à mobilidade; à segurança pública e ao acesso à justiça.

Em relação a eventuais repercussões no debate sobre a maioridade penal, é preciso registrar que além da ressalva de que os direitos da juventude não implicariam em prejuízo ao ECA, o PLC 98/2011 não dispõe sobre matéria penal em nenhum de seus artigos. De igual maneira, tanto a garantia constitucional de inimputabilidade aos menores de 18 anos quanto as medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não são tratadas pelo Estatuto da Juventude.

Cabe registrar ainda que na aplicação concreta das políticas públicas de juventude e da criança e do adolescente, a coexistência entre ambas já ocorre sem sobreposições ou prejuízo na atuação dos órgãos gestores e de controle social. No âmbito dos municípios, dos estados e da União, tanto as áreas de governo quanto os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares convivem com responsabilidades e atribuições diferenciadas em relação aos Conselhos de Juventude.

A partir de tal entendimento, os direitos da juventude não devem ser vistos como sobrepostos aos direitos da criança e adolescente. Em especial os jovens com idade entre 15 e 18 anos, vulneráveis por uma série de determinantes sociais, precisam mais do que ninguém da complementaridade das duas dimensões de direitos: tanto os direitos voltados a proteção integral, garantidos pelo ECA, quanto os direitos de participação, autonomia e emancipação, previstos pelo Estatuto da Juventude.

Ao tratarmos de direitos relacionados a fases da vida, devemos considerar que a juventude e a adolescência são construções históricas e sociais referenciadas em cada época e cultura. Embora os limites etários sejam de grande utilidade para o foco das políticas públicas, na vida concreta de adolescentes e jovens estas fronteiras não são tão rígidas ou homogêneas.

Na prática, a legislação brasileira já reconhece a complexidade da fase dos 15 aos 18 anos para a trajetória do indivíduo. É neste momento de transição entre o final da adolescência e os primeiros anos da juventude que se situa aos 16 anos a idade mínima para o trabalho (salvo em condição de aprendiz, a partir dos 14 anos); em geral, é dos 15 aos 17 anos que se projeta a conclusão regular da Educação Básica; a Constituição Federal permite o voto facultativo aos 16 anos e a partir dos 18, o jovem alcança a maioridade civil e penal.

Com tantas questões envolvidas, a leitura desta breve polêmica não deve ser entendida como uma disputa entre os defensores dos direitos da criança e dos adolescentes, de um lado, e o campo das políticas de juventude, do outro. Ao contrário, trata-se de um debate qualificado entre ativistas, conselhos, movimentos sociais e gestores públicos que estão historicamente unidos na defesa dos direitos das novas gerações no Brasil.

A riqueza desta discussão tem evidenciado o compromisso de setores representativos da sociedade com a ampliação de direitos dos adolescentes e jovens, a partir de pontos convergentes como a plena aplicação do ECA, o aperfeiçoamento e aprovação do Estatuto da Juventude ainda no ano de 2013 e a posição contrária à redução da maioridade penal.

Reconhecendo as políticas de juventude como políticas de Estado, para além da transitoriedade dos governos, o Estatuto da Juventude também completaria, ao lado do Estatuto da Criança e Adolescente e do Estatuto do Idoso, o primeiro ciclo de leis que garantem direitos geracionais no Brasil. Portanto, a mobilização da sociedade e do Congresso Nacional para sua aprovação são passos ousados de uma caminhada ainda maior pela garantia de direitos no país.


Severine Macedo é Secretária Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência da República


Bruno Elias é secretário-executivo do Conselho Nacional de Juventude